Materiais e Materialidade
Ao dizer a um observador externo que os materiais só recentemente ganharam protagonismo na produção em História da Arte, é provável que a reação fosse: " mas coisas, objetos, construções — não é o que vocês sempre estudaram?" . Afinal, somos ou não aqueles que investigam quadros, desenhos, gravuras, esculturas, relevos, vitrais, edificações, jardins, móveis, cerâmicas, vestimentas, acessórios, fotografias, filmes, instalações, ready-mades? Evidente que também são do nosso escopo as pessoas que criam as obras, os textos que estabelecem critérios que orientam ou tensionam a criação, os projetos e os esboços para que tal produção aconteça, os modos pelos quais se constituem coleções, mercados, instituições, entre outros aspectos. Mas hora ou outra, o fato que de que muitos de nós lidam com coisas costuma se impor no imaginário exterior à disciplina. Para quem a adentra, ao contrário, muitas vezes é quase impossível se desvincular da preocupação principal com a ideia, a representação, o símbolo, o projeto intelectual do artista. Talvez por conta desta ambivalência é que as discussões e desafios metodológicos advindos dos estudos de cultura material tenham florescido em muitos outros campos das Humanidades antes de seu impacto na História da arte ser considerável. Poderíamos evocar as raízes desse distanciamento da materialidade da obra de arte nas próprias origens míticas da disciplina. Em Vidas de Artistas (1550/1568), Giorgio Vasari apresenta sua defesa do disegno como ponto de partida da criação artística, determinando que este “procede do intelecto”, restando à mão apenas a habilidade para torná-lo visível. Diversos processos teóricos correlatos contribuíram para que isso se estabelecesse como uma linha de compreensão sobre a obra de arte que permaneceu. Um exemplo é o longo esforço de diferenciação entre arte e artesanato, permeado pela preocupação em evitar que a natureza ordinária dos objetos cotidianos maculasse o campo da História da arte, supostamente comprometido com a discussão mais elevada sobre a imagem e seus significados.
Nomes fundamentais tocaram a questão em outros momentos. A materialidade foi mobilizada pelo pensamento de autores tão diversos como Riegl, Benjamin, Baxandall, Latour, entre outros. No entanto, o chamado material turn propõe nos últimos anos mudanças significativas. Mobilizamos para a identidade visual do XIX Encontro o Perseu de Cellini (feito entre 1545 e 1554), referência à abordagem do material no trabalho de Michael Cole, e, portanto, dessas possibilidades metodológicas nos estudos do Renascimento, um dos espaços mais tracionalmente vinculados à importância da ideia e dos significados que transcendem a matéria da obra de arte. Não só as características físicas e sensoriais da obra de arte, mas os materiais e sua possível agência no criar tem ganhado destaque como possibilidade metodológica na História da Arte. Também a presença de sujeitos não humanos (animais, vegetais e minerais) nas produções artísticas passou a ser apreendida de outra forma. São marcos importantes deste processo trabalhos como o de Jules Prown, que destaca a necessidade da experiência sensorial direta com o objeto de estudo, ou o de Tim Ingold, que rejeita a ideia de que a matéria é algo inerte que simplesmente recebe a forma concebida pela mente. Para esse autor, a forma emerge da interação contínua entre o ser humano e os materiais, que são vivos e ativos. Do ponto de vista do método, as proposições de Ingold dão um passo além, indicando que sem conhecer os materiais através da prática com eles e no fluxo do tempo é impossível entender a obra de arte, já que se simplifica e congela algo que é complexo, dinâmico e mutável.
É no sentido de abordar os desafios e caminhos permitidos por este debate que o XIX EHA tem como eixo orientador de suas discussões o tema Materiais e Materialidade.