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RESENHA
ALMEIDA, Dóris Bittencourt; CUNHA, Maria Teresa Santos (orgs). Arquivos pessoais,
patrimônio e educação: ego-documentos em cena. 1. ed. Curitiba: Appris, 2024. 222p.
André Araujo de Oliveira
FE-UNICAMP, Brasil
andre_ao-21@hotmail.com
RECORDAÇÕES, ANOTAÇÕES, COLEÇÕES... UMA INCURSÃO PELO MUNDO
DOS ARQUIVOS PESSOAIS E EGO-DOCUMENTOS
O PREFÁCIO
O livro
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foi prefaciado pela Profa. Dra. Alessandra Cristina Furtado, docente da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Neste espaço, a prefaciadora apresenta
algumas informações a respeito da obra, como a quantidade de capítulos (onze) e de autores
(dezesseis) e as localidades de suas universidades (estados do Sul, Sudeste e Nordeste
brasileiros e Espanha).
Os objetos das investigações também foram indicados: tratam-se, sobretudo, de diários,
fotografias, missivas e de artefatos pertencentes ao universo católico. Outrossim, para Furtado,
a fertilidade dos estudos sobre ego-documentos é sinalizada na coletânea, tendo em vista a
variedade de materiais desta natureza, a sua disponibilidade em acervos e o seu valor enquanto
fonte documental.
A APRESENTAÇÃO
Na introdução, a Profa. Dra. Dóris Bittencourt Almeida e a Profa. Dra. Maria Tereza
Santos Cunha, as organizadoras, discorrem a respeito do grupo de pesquisa “Arquivos,
Arquivos Pessoais, Patrimônio e Educação”, o Garpe, formado em 2018. Elas explicam que o
seu intuito principal é o de fomentar as investigações em arquivos pessoais. Em relação à
documentação abordada na coletânea, afirmam que tal materialidade foi entendida pelos autores
na qualidade de um patrimônio educativo, mesmo a que ficou com as famílias dos professores.
As organizadoras acrescentam que os capítulos são da autoria das investigadoras do
grupo em apreço e também de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, os quais utilizam a
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A professora Maria Tereza generosamente me presenteou com um exemplar deste livro, a partir do qual elaborei
esta resenha. Os meus agradecimentos especiais vão, então, para a docente.
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mesma bibliografia que o Garpe. Apontam, ainda, que os ego-documentos são capazes de
favorecer o entendimento acerca dos indivíduos e do seu dia a dia, seja no âmbito da educação,
da religião, da política ou em demais esferas de sua vida pública.
RECORDAÇÕES
Em “O tempo que foi no tempo que se vive: álbuns de poesias e recordações em arquivos
pessoais de mulheres: décadas de 1950 e 1960”, o terceiro capítulo da coletânea, Dóris
Bittencourt Almeida e Maria Teresa Santos Cunha, as organizadoras da coletânea, se debruçam
sobre essa materialidade confeccionada por alunas do ensino sico. As autoras argumentam
que artefatos desse tipo são fundamentais para se entender os modos de se escrever e de se
recordar próprios de uma certa época. Vestígios de um intenso fluxo de pensamentos, eles eram
acessados pelas colegas como atividade escolar e como uma maneira de manter e de fortalecer
a amizade. casos em que a conservação foi realizada pelas educandas e em que a salvaguarda
foi efetuada por entidades especializadas.
Em relação ao embasamento dessa investida, é válido considerar que o trabalho se
fundamentou em várias referências conhecidas e relevantes em suas respectivas áreas. Em um
primeiro momento, Almeida e Cunha citam, por exemplo, Hartog (2006; 2015), a fim de
discutir a importância da preservação patrimonial; Ricoeur (2007), para abordar a memória e a
historiografia; Castillo Gomez (2012), visando mostrar o crescente interesse por objetos como
esses; e Cox (2017), com vistas a expor a pluralidade de pistas geradas pelas pessoas. Depois,
referenciam Grobe (2015), que apresenta a origem da expressão “ego-documentos”, cunhada
por Jacob Presser, em 1958; Amelang (2005) e Castillo Gomez (2013), os quais os definem
enquanto produções em que emoções e vivências são exibidas junto a um ego; e Brito e Corradi
(2018), que os concebem na qualidade de fontes que abrangem a individualidade, a privacidade
e as inspirações do detentor do arquivo pessoal. Ademais, trazem conclusões de Hébrard (2000),
que atribuiu o aparecimento do caderno como item passível de diversas apropriações à difusão
do papel, e de Perrot (1989), que enxergou estas meninas escolarizadas como verdadeiras
funcionárias da família, tendo sido encarregadas de fabricar, entre outras coisas, os álbuns em
apreço.
Dóris e Maria Tereza concebem tais álbuns, portanto, na qualidade de ego-documentos.
As pesquisadoras explicam que eles se popularizaram no final dos Oitocentos e perduraram até
a década de 1970. No caso dos objetos contemplados no capítulo, tratam-se, especificamente,
de álbuns de poesia elaborados por escolares gaúchas e catarinenses entre os anos 1950 e 1960.
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As autoras as descrevem como garotas brancas, oriundas de famílias mais favorecidas. Algumas
estudavam em escolas públicas e outras em estabelecimentos de ensino particulares, o que, de
acordo com as historiadoras, evidencia a abrangência dessa prática, a partir da qual se difundiam
condutas e princípios articulados à inculcação de uma sensibilidade romântica, muitos
provenientes do catolicismo. Elas afirmam, ainda, que esses materiais, ao serem utilizados para
fomentar a cordialidade, também passariam adiante uma cultura literária que valorizava afetos
e que propagava ideais como um jeito de se instruir.
Outrossim, a dimensão física desses álbuns é apresentada. Todos foram encapados. A
finalidade, aliás, é anunciada na capa, na qual se pode observar que se tratam de “poesias” ou
de “recordações”. Esse espaço contém, além disso, pinturas de arranjos florais que, por sua vez,
serviriam para sinalizar a feminilidade das educandas. As páginas são espessas e exibem
molduras, o que também tinha a ver com essa retratação das mulheres enquanto seres delicados.
A própria grafia gerada pela caneta tinteiro era enfeitada: demandando atenção e habilidade,
ela seria fruto do primor. Contudo, as investigadoras perceberam a existência de erros e de
rasuras em dois dos materiais contemplados na pesquisa. Com isso, segundo Dóris e Maria
Tereza, fica impossível subentender que todas as estudantes possuíam o mesmo cuidado em
relação aos seus cadernos.
As autoras avaliam, enfim, que os álbuns em questão são vestígios sensíveis, os quais
revelam diversas informações acerca de suas titulares e viabilizam um entendimento mais
amplo no que tange às ideias, aos sentimentos e às vivências das escreventes, que, aliás,
retrataram a escolarização daquela temporalidade. Da mesma maneira, a análise permitiu que
se conhecesse melhor o dia a dia e a sociabilidade dessas alunas, que indicam uma outra visão
na educação daquele período. Estes bens “falam” muito da cultura escolar, tendo em vista que
diversas habilidades aprendidas na escola eram postas em prática nesta fabricação. Além disso,
as educandas os levavam para diferentes residências, criando uma verdadeira rede de escritores
e de receptores desse conteúdo. As pesquisadoras finalizam o texto afirmando que, com este
patrimônio histórico-educativo, é possível enxergar, até certo ponto, o ensino concretizado, as
noções educativas de um lugar, as subjetividades e as conexões estabelecidas entre esses
sujeitos, sendo mais fácil notar as legislações e as determinações governamentais de uma dada
conjuntura.
O capítulo seguinte, Entre minúcias e miudezas, intensidades de uma vida dedicada à
docência: Alice Gasperin (1906 2002)”, é um texto de Terciane Ângela Luchese, no qual a
trajetória dessa docente é abrangida através de seus papéis. As suas vivências enquanto
profissional, filha de imigrantes italianos, proveniente do campo e religiosa aparecem nos vários
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materiais atualmente preservados no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami de
Caxias do Sul, o que viabilizou a análise. Ao introduzir as fontes, a autora também argumenta
a favor do seu valor, pois contam muito da sua titular e dos sujeitos com quem convivia,
conservando uma época e diversos fatos desse passado.
Lepetit (1998) é a principal referência na qual a perspectiva microscópica adotada por
Luchese se fundamenta, sendo a partir dela que se analisa Gasperin nesse trabalho. A
alternância de óticas na historiografia é, então, colocada como algo essencial, que as sutilezas
das mudanças são notadas mediante os detalhes de um indivíduo. Deste modo, para a
pesquisadora, os eventos locais são passíveis de serem enquadrados em uma conjuntura e a vida
de uma educadora, por exemplo, é capaz de evidenciar semelhanças presentes em um período,
em um grupo da sociedade e em certos tipos de atividade.
Posteriormente à apresentação do embasamento dessa investigação, algumas
lembranças de Alice referentes ao seu tempo de estudante são citadas e comentadas pela autora.
A professora se recorda, entre outras coisas, de que as aulas de leitura eram individuais,
enquanto as demais eram coletivas. O conteúdo deveria ser decorado. A escola possuía mapas
e obras destinadas à escolarização. Contudo, o se ensinava Ciências e nem redação: tal
habilidade seria adquirida por ela por meio da prática de redigir e de ler cartas em casa. Sendo
o asseio algo requisitado, um dos grandes desafios quanto ao acesso ao ambiente escolar seria
o da vestimenta, pois, em certo momento, dispunha de apenas uma peça para essa ocasião. Junto
com os irmãos, ajudava a mãe viúva nas atividades do campo.
A educadora ainda discorre a respeito do processo de sua contratação, o qual remonta
ao ano de 1920, quando a escola em que estudava ficou sem nenhuma docente e os moradores
da região se uniram e solicitaram a sua admissão, o que de fato aconteceu. Ela foi empregada
após ter realizado alguns exercícios exigidos para quem se candidatasse ao cargo. Pouco tempo
depois, voltou a estudar com um professor particular, a fim de adquirir mais conhecimentos e
se profissionalizar. Os seus resultados nas provas municipais, que surgiram como uma maneira
de se avaliar os profissionais da educação, sempre foram bons, tendo sido, inclusive, elogiados.
Se forma na Escola Complementar em 1943 e, no ano seguinte, começa a lecionar em um grupo
escolar.
Vale destacar que Terciane apresenta as lembranças que Alice guardou de sua
formatura, nas quais é possível observar a sua religiosidade. Foram preservadas duas
representações de santos católicos e uma espécie de cartão, cujo verso contém a frase “Educar
a Juventude para Deus e para a Pátria”. Ademais, um Salvo Conduto emitido pela professora
também figura entre os documentos arquivados e é exposto no texto, contextualizando os
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meados do século XX, um período ditatorial, e exibindo a impressão digital e a assinatura da
educadora naquela circunstância, além da sua ocupação, registrada enquanto “lidas
domésticas”. O seu diploma é outro arquivo imagético do capítulo.
Enfim, a autora coloca que essa docente lecionou por 45 anos, tendo buscado se
aperfeiçoar ao longo deste percurso, como muitos de seus pares. Ela era estimada pelos
moradores locais, sendo solicitada para auxiliar a redigir cartas e a resolver tensões, por
exemplo. Além disso, foi catequista e coordenou algumas atividades na Igreja. Se manteve
produtiva na aposentadoria, publicando livros e participando do cenário literário de Caxias do
Sul.
Já o oitavo capítulo da coletânea, “Querida afilhada, querido afilhado as lembranças de
batismo entre os pomeranos do Sul do Brasil (1950 1980)”, é da autoria de Vania Grim Thies.
A autora explica que grande parte dos objetos contemplados na pesquisa possuem escritos nos
quais as primeiras palavras são justamente essas endereçadas às meninas e aos meninos que
passariam por esse rito. Na caixinha, as madrinhas e os padrinhos manifestavam os seus afetos
e as suas felicitações pela ocasião especial.
Tais recordações foram encaradas na qualidade de ego-documentos, apresentando, tal
como Amelang (2005) coloca, a pluralidade de maneiras de se registrar as emoções e as
vivências individuais, e analisadas enquanto objetos da investigação historiográfica através da
perspectiva de representação e materialidade desenvolvida por Chartier (2002; 1990). Ademais,
os 14 itens abarcados na pesquisa foram conservados em um arquivo pessoal. A sua titular
era uma mãe que guardou os artefatos de toda a família.
Thies se embasa, igualmente, em Dekker (2002), para quem os ego-documentos são
aqueles referentes às participações dos sujeitos em celebrações como a do rito em questão e,
também, às suas trajetórias. Segundo a pesquisadora, essas recordações se constituem em
vestígios da cultura pomerana, evidenciando os votos das madrinhas e dos padrinhos às meninas
e aos meninos que seriam batizados. Ela se fundamenta, ainda, em Artières (1998), o qual
entendia que uma pessoa precisa salvaguardar os seus arquivos a fim de obter a validação da
sua identidade. Tal projeto de preservação teria sido constatado na pesquisa, pois os materiais
se encontravam conservados há sete décadas, validando a titular e os seus familiares enquanto
pomeranos.
De acordo com a autora, a mulher que possuía esse arquivo pessoal teria lhe informado
a respeito do processo de entrega das caixinhas às afilhadas e aos afilhados, a qual se daria no
encerramento do batismo. Quando o pastor concedia a certidão aos progenitores, essas
recordações seriam deixadas sobre as meninas e os meninos, que, por sua vez, se encontrariam
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nos braços da mãe. A celebração estaria encerrada. Por outro lado, como Thies mostra, dentro
delas haviam textos com dados a serem anotados, o que nem sempre ocorria do jeito indicado.
Além disso, a pesquisadora informa que era usual se inserir coisas na caixinha, as quais
retratavam o que remetentes esperavam que os destinatários conquistassem em suas trajetórias.
Tratam-se, por exemplo, de penas e pelos de bichos, sementes, dinheiro e de itens relacionados
à costura e ao bordado. As cores dela e o conteúdo depositado variavam conforme o sexo
biológico da criança. Thies ainda afirma que a materialidade inserida também dependia da
família e do lugar: as experiências comunitárias e as conexões sociais seriam muito importantes
na cultura pomerana.
Uma outra investida de Vania se deu no sentido de averiguar como a confecção dessas
recordações se dá nos dias de hoje no Rio Grande do Sul, onde o arquivo pessoal analisado foi
construído e preservado. A autora percebeu que, atualmente, essas caixinhas o
confeccionadas artesanalmente por mulheres em suas próprias residências. Elas imprimem o
texto e inserem ilustrações para decorar o papel. Após a finalização, esses objetos o
comercializados em livrarias e bazares. A inserção dos símbolos é realizada pelas madrinhas e
pelos padrinhos que os adquirem.
Ancorada em Ricoeur (2007), a pesquisadora entende que esses presentes seriam dados
como um jeito de se conceder uma identidade de grupo às meninas e aos meninos, apresentando
simbolizações através dessas recordações. As caixinhas foram concebidas, portanto, enquanto
um legado construído por esses sujeitos de ascendência pomerana, o qual ainda é transmitido
aos mais novos, apesar de ter sofrido alterações ao longo das décadas. A autora conclui, enfim,
que a elaboração e a salvaguarda dessa materialidade se constituem em maneiras de se abordar
tal etnia mediante as retratações supracitadas.
ANOTAÇÕES
O capítulo cinco, “Entre listas, letras e flores: os fios da memória no livro guardado
(1920 1950)”, é escrito por Alice Rigoni Jacques. A fonte contemplada no capítulo é um bem
deixado por Assis Barcellos, dono de uma granja no estado gaúcho. Através desse
empreendimento, ele vendia comida para empregados deste segmento, cujo acesso a esse tipo
de produto era limitado em decorrência das grandes distâncias entre as suas residências e o
espaço urbano, onde a sua venda se dava. Ao introduzir a pesquisa, a autora também discorre
acerca do conteúdo do material explorado, o qual abarca, por exemplo, a identificação desses
consumidores e o que era vendido.
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Jacques coloca que a sua intenção é verificar quantas pessoas realizavam estas compras,
cuja dívida poderia ser quitada bastante tempo depois; o que compravam; o que foi anotado; e
o que consta nas folhas avulsas deixadas dentro desse livro. A pesquisadora anuncia, ainda, que
buscou refletir sobre as razões pelas quais a preservação do material se deu e o valor dele para
a família do proprietário da granja. Outrossim, a autora explorou as marcas de uso e as
marginalias, bem como os modos de preparo de comidas e as flores presentes na fonte.
Ademais, procurando garantir maior robustez à investigação, ela entrevistou dois familiares do
senhor Assis.
Alice apresenta, então, as suas observações em relação ao objeto investigado, o qual
possui um total de 234 folhas. Nas páginas iniciais, foram registrados 64 nomes, todos de
homens, possivelmente trabalhadores da plantação de arroz e vizinhos. Perto da identificação,
há uma numeração desordenada que vai do 1 até o 317. A partir da terceira lauda, as anotações
também passam a ser referentes às aquisições, aos preços e às dívidas quitadas e em aberto.
Posteriormente, 118 mulheres aparecem identificadas. Todavia, todas as obtenções se
encontram articuladas aos primeiros, o que leva a autora a supor que eles eram os provedores
desse consumo.
A caligrafia é, igualmente, analisada pela pesquisadora, que a descreve como
caprichosa. Para ela, esse fato é um sinal da boa formação escolar do senhor Assis e de sua
esposa, a dona Saturnina Abreu Barcellos, que também escreve no livro. Além disso, Alice traz
as memórias de Nei Barcellos, filho do casal, a respeito da letra do pai, reconhecida por ele no
material em apreço. Ao tocar no tema, o entrevistado se lembra, inclusive, da escola construída
pelos donos de terras, a qual se localizava no próprio terreno da granja e atendia os filhos dos
trabalhadores e dos moradores locais.
É muito interessante o fato de que a autora mostra algumas das marginalias, as quais
sempre continham o termo “segue”, apontando para a continuação do tópico abordado na
página. Alice entende que elas representam o valor conferido às listas e à preservação dos seus
dados. A inserção de receitas no livro é comentada na sequência: é plausível que ele tenha sido
o suporte escolhido pelas escreventes, dona Saturnina e, talvez, Julia Barcellos, por conta da
sua durabilidade, a qual asseguraria a conservação e a transmissão dessas informações. Quanto
aos ingredientes, a pesquisadora sublinha a sua acessibilidade: os trabalhadores poderiam obtê-
los tranquilamente na cooperativa.
Assim como as receitas, as flores inseridas no livro são consideradas elementos
pertencentes ao mundo feminino, De acordo com a escritora, as simbolizam relíquias, as quais
teriam a ver com uma certa nostalgia, tendo sido deixadas nesse espaço para dar abrigo à
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intimidade da pessoa que teve a iniciativa de colocá-las dentro desse suporte. Alice afirma que
se trata de um desvio, pois o material estava sendo utilizado para outros fins. Seja como for, na
sua visão, retratam uma época que ainda inspira a atualidade
Assim como as receitas, as flores inseridas no livro são consideradas elementos
pertencentes ao mundo feminino. De acordo com a escritora, elas simbolizam relíquias, as quais
teriam a ver com uma certa nostalgia, tendo sido deixadas nesse espaço com vistas dar abrigo
à intimidade da pessoa que teve a iniciativa de colocá-las dentro desse suporte. Alice afirma
que se trata de um desvio, pois o material estava sendo utilizado para outros fins. Seja como
for, na sua visão, retratam uma época que ainda inspira a atualidade.
Quanto à fundamentação da pesquisa, vale destacar algumas referências citadas pela
autora, visto que indicam os campos com as quais dialoga. Artières (1998), por exemplo, é
citado quando a questão da preservação do conteúdo do livro é discutida: entende-se que o
acondicionamento desses escritos resultou de uma investida no sentido de se efetuar um
“arquivamento do eu”. Em complemento, Ricoeur (2007) é trazido para a discussão em torno
da memória, já que o material foi conservado pelo primogênito do senhor Assis, o qual teria se
incumbido dessa missão de combater o esquecimento. Por outro lado, as considerações de
Chartier (2011) a respeito da historiografia são referenciadas em um parágrafo destinado
exclusivamente à sua apresentação, chamando a atenção para o valor da memória enquanto
fonte da escrita da história.
Entre as citações, também figuram: Mignot (2003), para a qual as folhas que os
anônimos preservam suscitam diferentes interpretações; Cunha e Souza (2015), que enxergam
a escrita enquanto indício do percurso percorrido pelo escrevente; e McKemmish (2013), cujo
conceito “provas de mim” é apresentado na qualidade de uma ótica interessante: a partir dele,
explica-se os sujeitos através de contatos que envolvem, por exemplo, papéis.
Alice ainda se debruça sobre os escritos avulsos inseridos no livro. Tratam-se de dois
vales, os quais contêm a identificação dos funcionários e a informação do que seria adquirido
ou solicitado. Na sua visão, são materiais que integraram o dia a dia experenciado na granja e
que mostram a articulação entre modos de anotação distintos. Para a autora, junto com os
demais conteúdos e com as entrevistas, eles se constituem enquanto pistas e aspectos possíveis
de um tempo pretérito que ecoa na contemporaneidade.
O capítulo seguinte, “Cartas sobre as salas de aula e a circulação dos afetos em classe,
é um texto da autoria de André Luiz Paulilo e Claudiana dos Reis de Souza Morais. Nele,
aborda-se a questão dos vínculos que os estudantes possuem com os professores e do modo
como estes últimos são percebidos em termos de competência profissional. Sendo poucos os
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rastros deixados por esses sujeitos que apontam para essa dimensão subjetiva, os entraves e a
falta de estudos acerca do tema são levantados.
Cunha (1989) é a primeira referência que aparece no capítulo, tendo sido citado o seu
entendimento de que a imagem do educador competente é sempre proveniente de um local e de
uma época, guardando relações, inclusive, com as noções educativas vigentes. Em
contrapartida, as conclusões de Cuban (1992) no que tange ao âmbito concreto da sala de aula
são referenciadas: elas indicam que existem poucas pistas referentes a esse cotidiano de outrora,
mas que, através delas, é possível perceber a prevalência do conservadorismo docente frente às
propostas de inovação educacional.
Depois de terem apresentado tais considerações, os autores explicam qual é a
materialidade que será abrangida no texto. Com a intenção de observar a percepção dos alunos
no que se refere à competência dos seus professores, Paulilo e Morais investigaram algumas
missivas recebidas por Julio Cesar de Mello e Souza, procurando evidências da sua atuação
como educador. Os materiais são provenientes do arquivo pessoal do docente, que se encontra
no Centro de Memória da Faculdade de Educação da UNICAMP.
A respeito desse professor, é colocado que ele realizou diversas publicações voltadas
para a educação matemática, tendo se valido do pseudônimo Malba Tahan nas mais recentes e
publicado, com esse nome, obras sobre didática. A partir da análise de fotos do seu arquivo
pessoal, observa-se a sua dinâmica em sala, a qual era bastante teatral. Os autores também
enxergam evidências de que o docente possuía muita experiência com as crianças. Outrossim,
notam que o educador lecionava com jaleco e que os alunos aparentavam estar intensamente
concentrados em suas explicações.
Além disso, Paulilo e Morais mostram o quanto Mello e Souza era estimado pelos
escreventes das cartas que recebia. Uma estudante, a título de exemplo, o via como um professor
que se diferenciava pela extensão dos seus conhecimentos e pelo seu talento para lecionar. Ela
enaltece, igualmente, as suas lições, as quais, na sua opinião, não eram exaustivas para os
discentes. Ademais, toda uma classe de educandas se opõe ao plano do docente de deixar de
ministrar aulas ao grupo, valorizando a sua figura. O pai de um menino que estudava no Colégio
Pedro II é outro remetente. O homem aprecia a sua sabedoria e agradece por sua atuação, razão
da motivação do garoto.
Os seus pares também lhe escreviam. Os autores se debruçam sobre duas cartas
redigidas por amigos. Uma delas foi enviada por Carolina Ribeiro, do Instituto de Educação de
São Paulo, que acreditava no potencial de Mello e Souza, considerado capaz de conferir
significado ao ensino dos cidadãos brasileiros. A outra é de Edgard Sussekind de Mendonça,
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do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, que o convidou a compor o quadro do seu
“Explicandário”, um projeto de escola alternativa.
André e Claudiana finalizam o texto afirmando que essas missivas evidenciam a ótima
reputação do professor Mello e Souza nos meios onde atuava. Tais registros indicam que ele
era um educador muito apreciado pela maneira como lecionava, motivando os estudantes de
um jeito bastante único. Malba Tahan era tido, ainda, enquanto um excelente profissional,
alguém sensato, singularmente culto e que conseguiria discorrer sobre conteúdos complexos
sem deixá-los difíceis de serem compreendidos. Os autores, contudo, se ancoram em Diaz
(2016) para desmistificar as cartas, as quais, na visão citada, não se constituem em um mero
diálogo entre duas pessoas: elas são um modo de envio de mensagens estruturado
coletivamente, impactado por referências a serem seguidas no que tange à adequação da escrita
e articulado a determinados costumes. Esses documentos demandam, assim, um grande cuidado
em relação ao que contam e às conexões existentes à sua volta.
o capítulo sete, “Ensaios do eu: a escrita autobiográfica nos processos seletivos de
residentes da Casa do Estudante Universitário Aparício Cora de Almeida Ceuaca (Porto
Alegre, RS 1987-2009)”, foi escrito por Marcos Luiz Hinterholz e Tatiane de Freitas Ermel.
Na introdução, os autores explicam que essa moradia estudantil surgiu em 1934 no munícipio
enunciado no título. O seu arquivo possuí vários materiais, dentre os quais as fichas dos alunos
que a habitaram. Os pesquisadores afirmam ser notável o tom de súplica adotado pelos discentes
ao se candidatarem a uma vaga, que detalhavam a sua situação financeira. Ainda nas páginas
iniciais, eles se embasam em Castillo Gómez (2001) a fim de apresentar os objetos da pesquisa
na qualidade de ego-documentos, colocando que foram capazes de notar: os percursos
percorridos por esses educandos nessa localidade; os seus empregos; a sua esperteza, pois se
mobilizaram para ingressar e permanecer na universidade; e alguns traços da sua subjetividade.
Vale ressaltar que Hinterholz e Ermel deixam em evidência os pontos de vista a partir
dos quais essas fichas o enxergadas nessa investigação. Por um lado, elas guardam relações
com uma dimensão administrativa, tendo sido geradas para a realização da seleção de alunos.
Em contrapartida, esses registros expõem uma variedade de redes de sociabilidade e
informações a respeito de certos grupos, tais como a família. Os autores acreditam que os
estudantes, ao terem escrito sobre si, também mostraram pistas daquele tempo, ideias, símbolos,
princípios e, claro, um pouco da sua biografia. Apesar de serem produções destinadas à escolha
dos moradores da Ceuaca, em que se visava chamar a atenção do leitor para determinadas
coisas, os pesquisadores as interpretam como textos providos de autoria. De acordo com os
dois, os candidatos construíram as suas narrativas biográficas através dela.
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Quanto à análise desses relatos, observou-se que praticamente todos foram escritos à
mão, em uma ou duas laudas. Esses textos seriam mandados junto com as fichas da seleção,
nas quais os candidatos deveriam anotar as suas informações pessoais e acadêmicas, os seus
vínculos empregatícios e alguns detalhes da situação socioeconômica da família. O
procedimento teria começado em 1987, sendo que, em 2014, os alunos desocuparam o edifício
por conta da sua deterioração, não tendo sido habitado desde então.
Marcos e Tatiane escolheram 52 relatos, os quais se adequavam aos intuitos da
investigação. A maioria dos escreventes é constituída por homens, discentes de faculdades
particulares e trabalhadores. A grande parte dos seus progenitores possuía uma escolaridade
baixa e ganhava pouco. Ademais, esses estudantes relatam a procura por emprego, os péssimos
pagamentos recebidos, os percalços enfrentados para estar em dia com o aluguel e a percepção
de que estavam atrapalhando quem lhes abrigavam na cidade. Muitos deles também contam
que estudaram em escolas públicas e que precisaram trabalhar quando ainda eram crianças e
adolescentes.
Os autores entendem que a ideia desses alunos era ir para o munícipio em apreço,
conseguir um trabalho e obter o diploma de graduação, um plano nem sempre nítido e sólido.
Tratava-se de uma investida permeada por dúvidas e desafios: nada estaria garantido. Ao
deixarem a casa dos pais, muitos empecilhos poderiam surgir e impedir que conseguissem se
graduar. Para os pesquisadores, ao elaborarem esses relatos, os discentes observaram a si
próprios e se avaliaram, ponderando acerca das suas situações desfavoráveis. A partir da
construção dessas narrativas, eles puderam perceber esta vulnerabilidade, tendo sido capazes,
porém, de se imaginarem em um contexto melhor.
Marcos e Tatiane também notaram alguns traços das subjetividades desses estudantes.
Vários deles procuraram enaltecer, a título de exemplo, o jeito como conviviam com os demais
e as suas vivências enquanto pessoas que haviam divido casa. Nesse sentido, os autores
concluem que tais relatos abarcaram o existencial e que, além disso, o próprio destino desses
alunos estaria em jogo nesses percursos e nessa procura por validação. Para eles, essas
narrativas viabilizaram um olhar em direção às trajetórias concretas desses sujeitos, tendo
deixado nítida a relevância das moradias até os dias de hoje.
Mais adiante, nono capítulo da coletânea, intitulado “Revelações de escritas ordinárias
no arquivo pessoal de Beatriz Góis Dantas (1956-2016)”, Marluce de Souza Lopes e Joaquim
Tavares da Conceição se debruçam sobre essas produções elaboradas por essa professora
universitária. De acordo com os autores, as suas pesquisas analisavam manifestações
folclóricas, aspectos culturais de povos originários e confecções artesanais. Ademais, para eles,
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os seus trabalhos teriam auxiliado no entendimento acerca das religiões afro-brasileiras. Em
contrapartida, além dessa bibliografia, os pesquisadores colocam que a docente produziu outros
textos, os quais se encontram em seu arquivo pessoal.
Lopes e Conceição referenciam Hébrard (2000) a fim de afirmar que esses registros se
tratam de escritas ordinárias. Segundo eles, tais textos carregam memórias, deixando
transparecer princípios, crenças e vivências e particularidades de um período. Os autores
também citam Pollak (1989), para quem esse tipo de material alude a espaços, a indivíduos e a
eventos. Conforme Morin (1969) e Cunha (2009), outras citações trazidas no capítulo, essas
anotações são passíveis de serem concebidas, ainda, na qualidade de “objetos biográficos”, os
quais se vinculam ao percurso individual e aos parentes próximos dos escreventes.
A primeira fonte abordada é um álbum de poesias. Nele, Beatriz teria escrito as obras
que mais gostava. Lopes e Conceição mostram que ela enfeitou a contracapa com uma
ilustração de flores. De acordo com a mesma, em meados do século XX, no entanto, esse tipo
de literatura e de atividade não era usual na escola. Para os pesquisadores, o material evidencia
a situação na qual a escrevente se encontrava, com tarefas escolares a serem cumpridas e
distante da família, pois estudava em um internato, sendo importante, assim, anotar
sentimentos, o que o configuraria enquanto um verdadeiro acervo de memórias. Outrossim, eles
destacam a impecável apropriação do suporte, observando um rigoroso respeito aos
espaçamentos, e a ótima caligrafia da titular.
A outra materialidade analisada é um caderno no qual Beatriz inventariou os livros que
ela e o marido haviam adquirido. A catalogação teria se iniciado no ano em que se casaram,
sendo que a constituição da biblioteca do casal dataria do início do relacionamento amoroso.
Para os autores, apesar do encerramento dessa investida, esse suporte deixa nítida a difusão de
dadas referências bibliográficas naquela época e viabiliza um entendimento sobre os
engajamentos e os favoritismos, além de exibir um tipo de escrita diferente, o qual visou
conservar as lembranças em relação ao que foi lido. Conforme os pesquisadores, a realização
dessa lista envolveu uma seleção e uma parcialidade.
A terceira fonte discutida nesse capítulo é uma encadernação na qual Beatriz agrupou
quatro escritos de sua autoria. Nela, uma dedicatória ao seu neto. Marluce e Joaquim
informam, ainda, que a escrevente não planejava publicá-los. No que tange ao conteúdo,
segundo os autores, abarcou-se a convivência com mulheres próximas a ela, esse dia a dia nas
fazendas e, também, os seus jeitos, as características evidenciadas pelo modo como trabalhavam
e apreciavam os empregadores, os pais dela.
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o último material investigado é uma produção textual de Beatriz referente ao seu
genitor. Como levantado pelos pesquisadores, ela coloca que possuía a intenção de contar a
respeito desse indivíduo bastante tempo antes de finalmente começar a escrever o livro,
tendo postergado essa escrita porque precisou se dedicar a atividades mais essenciais. Cabe
destacar que a escrevente expõe a biografia de Antônio Germano de Góis, incluindo o momento
no qual ele teria percebido a sua vocação para o trabalho no campo. Por outro lado, Marluce e
Joaquim sublinham as suas práticas de leitura e os seus gostos literários: o fazendeiro gostava
de cordel e lia almanaques especializados a fim de conferir as recomendações destinadas aos
produtores agrícolas. Eles assinalam, igualmente, os registros realizados pelo biografado no
sentido de gerir as suas propriedades e os serviços prestados nelas.
Nas páginas finais, os autores apresentam a visão de Halbwachs (1990) no tocante à
memória, segundo a qual as recordações humanas são sempre grupais, o que se deve à natureza
social dos sujeitos. Eles afirmam, portanto, que quem se recorda integra ou integrou pelo menos
um coletivo, e que as suas ideias guardam relações com essas vivências. As lembranças seriam
desenvolvidas, então, na convivência. Na sequência, o texto é finalizado com uma conclusão
fundamentada em Artières (1998): os materiais elaborados por Beatriz demonstram que ela
arquivou a sua trajetória pessoal com o intuito de salvaguardar a sua identidade. A antropóloga
teria se valido das suas rememorações e daqueles à sua volta, circunscritas a um espaço e a uma
época, a fim de produzir esse acervo. Na perspectiva dos pesquisadores, tal materialidade deixa
nítido o valor desse tipo de fonte, a sua capacidade de contribuir para o avanço da historiografia.
O décimo primeiro capítulo, “Desejo a ti: dedicatórias em cadernos de recordações de
um internato luterano para mulheres (séc. XIX)”, por sua vez, foi escrito por Luciane Sgarbi S.
Grazziotin e Estela Denise Schütz Brito. O texto é introduzido com a afirmação de que a
investigação se valeu da conexão entre os estudos sobre as práticas de escrita, a instrução
feminina e os estabelecimentos de ensino. Outrossim, as autoras informam que os seus grupos
de pesquisa investem na captação, conversação e catalogação de fontes escolares visando
expandir a relação de objetos desse tipo e, assim, aprimorar o entendimento a respeito da escola,
considerando a sua historicidade, a esfera da coletividade e da cultura e, também, os vínculos
que os indivíduos mantêm com a sua época.
No que tange às referências teórico-metodológicas, as pesquisadoras trazem o
pioneirismo de Febvre (1989), que, 80 anos atrás, apontaria para a viabilidade de se
investigar os sentimentos contidos em acontecimentos, espaços e materiais, através dos quais
seria possível reconhecê-los e configurá-los como os principais elementos estudados por
eventuais trabalhos historiográficos. Ademais, Grazziotin e Brito citam as colocações de
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Escolano (2021), para quem esse assunto é bastante pertinente à área da História da Educação,
pois, conforme o mesmo, esses componentes das vivências pretéritas aparecem, a título de
exemplo, nas recomendações de posturas, nas punições, nas premiações, nas competições e nas
celebrações.
As autoras explicam que a pesquisa buscou localizar a presença desse plano subjetivo
nos cadernos apresentados no título do texto e, inclusive, contribuir para o aperfeiçoamento dos
estudos acerca dessa categoria de fonte. Além disso, Grazziotin e Brito se valem da noção de
Certeau (1994) no que se refere às práticas, entendidas enquanto raciocínios responsáveis por
modos de se realizar ações. A partir dela, as autoras teriam mergulhado na cultura escrita
própria das classes mais abastadas e dos alemães que migraram em direção a um lugar
específico. De acordo com as mesmas, os objetos evidenciam traços de um dia a dia escolar, os
quais foram explicitados nas dedicatórias de estudantes e educadoras que frequentaram a
entidade em apreço, localizada no Rio Grande do Sul.
Luciane e Estela abordam, ainda, o fato de que o patrimônio histórico-educativo é
comumente esquecido e negligenciado pelos estabelecimentos de ensino e pelos demais espaços
onde ele pode se encontrar depositado. Segundo as pesquisadoras, esse abandono se por
diversos motivos, sendo os mais recorrentes: a escassez de dinheiro e de pessoas encarregadas
pela salvaguarda dessa deixa e a ignorância em relação ao seu valor na qualidade de fonte para
trabalhos historiográficos e educativos.
As autoras expõem, então, dois projetos de pesquisa dos quais participam e os seus
intuitos: encontrar entidades no Vale do Rio Sinos que possuíam acervos com esse tipo de
materialidade e achar diferentes categorias de documentos, em especial ordinários, articulados
ao ensino. De acordo com elas, foi nesse contexto que tiveram contato com os cadernos
mencionados, em um museu da região. As mesmas informam que muitas de suas dúvidas não
puderam ser respondidas. Assim, não conseguiram esclarecer a razão dos objetos estarem nesse
local, as condições em que foram recebidos, os motivos da sua salvaguarda e como ela se deu
e os vínculos entre os doadores e as titulares.
Quanto ao desenvolvimento das análises, as pesquisadoras relatam que os materiais se
encontravam em expositores lacrados. Após terem obtido acesso às fontes mediante solicitação
ao museu, elas digitalizaram todos os cadernos. O trabalho de tradução do idioma original para
o português foi pago com o financiamento dos projetos supracitados. Luciane e Estela também
informam a respeito das suas observações, mostrando que as dedicatórias em questão são
reflexões, poemas e votos, os quais giravam em torno de temas como a vida, a alegria e a
amizade: os escreventes esperariam que boas coisas acontecessem para as titulares, sendo que
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em várias delas é explicitada a esperança de que essas estudantes recebessem dádivas ao longo
de suas trajetórias.
As autoras concluem o texto afirmando que o cotidiano escolar não se resume ao
processo de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, elas chamam a tenção para a dimensão dos
sentimentos, a qual ficou evidenciada nas dedicatórias investigadas. As pesquisadoras
destacam, igualmente, a possibilidade de se estudar outros elementos presentes nesses álbuns,
como, por exemplo, as ilustrações, pois enxergaram variações e uma diversidade de figuras.
Já o capítulo “As cientistas sociais brasileiras e seus arquivos” é o último da coletânea.
Nele, Carolina Gonçalves Alves se debruça sobre a atuação feminina no campo da sociologia
através da materialidade em apreço, visando expandir a própria abrangência da área. A autora
justifica a investida defendendo que a documentação acerca dessas pessoas é escassa, sendo
importante, então, ponderar a respeito dessa invisibilidade. Conforme a pesquisadora, a sua
intenção é localizar a pluralidade de assuntos, de perguntas e de objetos abarcados no âmbito
das Ciências Sociais, mediante, sobretudo, a análise de trabalhos desenvolvidos por mulheres.
Alves ressalta, assim, a relevância desses arquivos, os quais abrangem diversos tipos de
registros e de publicações. De acordo com a autora, eles viabilizam um contato com trabalhos
produzidos em conjunturas distintas, evidenciando vivências e projetos característicos de certos
períodos. Ela defende que a sua investigação possibilita um maior entendimento em relação à
atuação, aos percursos dessas mulheres e às suas contribuições para a constituição desse campo.
Quanto ao embasamento epistemológico, a pesquisadora cita, por exemplo, as
considerações de Hall (2016) e Said (2003) a respeito da Modernidade, os quais entendem que
a narrativa da superioridade europeia elaborada pelos colonizadores manteve a maioria dos
seres humanos afastada do seu potencial de existir e refletir sem estar aprisionada. Conforme
Alves, o âmbito da arquivologia vem sendo impactado pelas produções feministas e pós-
coloniais, resultando na consolidação de uma visão que pondera acerca da falta de
documentação referente a certos indivíduos e coletivos e que investiga como os trabalhos na
área estão sendo afetados pelas reivindicações da sociedade no que tange aos arquivos.
Ademais, Carolina apresenta o CPDOC, o qual investe no recolhimento e na disposição
de materiais pertencentes a arquivos pessoais, além de se empenhar em possibilitar o contato
com esses objetos. Ao longo de sua existência, a entidade passaria cada vez mais a reconhecer
a importância de se valorizar os acervos femininos. A autora afirma que ela possui atualmente
sete desses conjuntos documentais cujas titulares foram cientistas sociais. Na sequência, o
conteúdo deles é exposto com maior riqueza de detalhes.
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A pesquisadora frisa que tais arquivos pessoais oferecem uma perspectiva valiosa e
distinta em relação ao Brasil dos dias de hoje. Para ela, esses documentos permitem que se
tenha um contato com diversos olhares e conhecimentos. Carolina reconhece, porém, que o
potencial dessa materialidade não foi esgotado em seu texto. Nesse sentido, o fato dos acervos
se encontrarem disponíveis ao público é colocado como algo importante, possibilitando que
outras pessoas também analisem esses materiais.
COLEÇÕES
“Os papagaios de Parets: Reflexões sobre uma fonte autobiográfica”, o primeiro
capítulo, é uma tradução de um texto de James S. Amelang. Na introdução, o autor indica que
o objeto, ou seja, uma pintura de pássaros a qual havia sido adquirida por Miquel Parets, artesão
espanhol dos seiscentos, lhe é misterioso e que o tema será tratado nas páginas seguintes,
deixando claro que ele é quem enxerga estas aves enquanto tais.
No entanto, antes de discorrer a respeito deste item da coleção de Parets, Amelang cita
algumas referências bibliográficas nas quais os desafios encarados pelos biógrafos são
contemplados, principalmente os problemas combatidos por aqueles que têm à disposição
apenas materiais autobiográficos. Elenca, assim, O papagaio de Flaubert (1984), de Julian
Barnes, e The Aspern Papers (1888), de Henry James, como escritos importantes para se refletir
acerca destas problemáticas.
Após mencionar estes trabalhos, o pesquisador anuncia que o intuito do artigo é o de
debater, justamente, as articulações entre autobiografia e biografia. Para tal, traz uma de suas
publicações, O voo de Ícaro (2003), na qual escreve sobre uma crônica produzida por Parets.
Amelang se questiona em relação ao motivo de um indivíduo como Miquel, que pertencia às
classes populares, se dedicar tanto ao empreendimento em apreço, uma obra bastante extensa.
De acordo com ele, os postulados da história social levaram-no a buscar a solução na vida deste
sujeito.
O autor demonstra que a crônica em si possui um conteúdo relevante para uma pesquisa
neste sentido. Afinal, ela é urbana e contempla fatos importantes da época. Além disso, fatos
referentes à família de Parets, como datas especiais por exemplo. Os seus colegas também
foram descritos: Miquel anotava algumas de suas características ao falecerem. Por outro lado,
trata-se de um livro de memórias. Nele, o batedor de couro expõe a sua relação dramática com
a peste, tendo em vista que a sua esposa e quase todos os seus filhos faleceram em decorrência
da infecção.
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Outro documento exposto por Amelang é o inventário realizado posteriormente ao óbito
de Parets, no qual menção ao quadro supracitado. Ele explica, então, como organizou os
materiais: os documentos referentes aos batedouros de Barcelona foram separados, na medida
do possível, dos que tinham a ver com as pessoas mais ou menos próximas de Miquel.
Interessava-lhe saber mais sobre as redes de sociabilidade do artesão. Em contrapartida, a
leitura de escritos parecidos com a crônica em questão lhe foi muito frutífera.
James expõe, assim, a bibliografia a qual o levou a tal estratégia, em um período em que
os historiadores se voltavam cada vez mais para a “autobiografia popular”. Primeiramente,
apresenta a publicação de Alain Lottin (1979) a respeito de um texto dessa natureza, produzido
por Pierre-Ignace Chavatte. “O Grande Massacre dos Gatos”, de Robert Darton (1985),
inspirou, igualmente, a sua investida. Ademais, chama a atenção para duas outras obras que o
cativaram na ocasião: uma produção de Paul Seaver
2
em que aborda um puritano inglês e, em
especial, uma edição de uma espécie de diário de um francês elaborada por Daniel Roche, em
1982.
Na sequência, o autor sublinha um dos grandes percalços presentes em sua trajetória,
isto é, a utilização de termos considerados inadequados pelos seus pares. Os escritos que lia,
por exemplo, eram considerados por ele na qualidade de “autobiografias”. O historiador
reconhece, é claro, que não se tratava deste tipo de biografia contada linearmente e deixa
evidente que hoje, na verdade, o correto é nomeá-los de “ego-documentos”. Em segundo lugar,
ele se valia do adjetivo “popular” a fim de enquadrar Parets e demais artesãos, o que, do mesmo
modo, lhe gerou críticas: naquele momento, era quase um consenso a associação entre o
analfabetismo e as classes populares da Modernidade.
Amelang conclui que esses artesãos autobiógrafos experienciavam, ao mesmo tempo,
certo pavor, por estarem acessando lugares entendidos como próprios das elites, e um
enaltecimento de suas vitórias e, principalmente, da habilidade que tiveram de ultrapassar os
limites impostos à sua classe social. De acordo com James, eles almejavam subir na sociedade
e elaborar escritos dessa natureza seria algo fundamental para o seu êxito.
O autor apresenta, ainda, algumas ponderações pessoais pertinentes às autobiografias
populares modernas. A respeito dos seus leitores, entre os quais estavam, evidentemente, os
familiares, afirma que nos seiscentos, com a imprensa, o público cresce e tais obras são, deste
modo, popularizadas. Ele também demonstra que o mecenato foi importante para tal iniciativa,
algo mais evidente nos textos de autoras, que sinalizavam o fato de estarem sendo autorizadas
2
A data da publicação do exemplar consultado não é informada.
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por algum homem. Outro ponto levantado é o do conteúdo dessas publicações: diversas
omissões no que tange ao âmbito do trabalho e da subjetividade. O historiador também mostra
que foi possível localizar as leituras realizadas por esses artesões, escritos cujo modo de escrita
pode ter sido, inclusive, uma referência para tais escritores.
Amelang coloca, então, a sua interpretação da motivação de Miquel para elaborar a sua
crônica, a qual é trazida do seu livro de 2003. Na sua perspectiva, o batedor de couro escrevia
sobre o âmbito particular com vistas a compor o discurso coletivo de Barcelona. Tratava-se de
uma demanda pelo reconhecimento de sua cidadania. James explica que nesse período, tal
exigência seria viável no cenário urbano, o que casa com a existência de uma ampla
documentação da atuação de Parets no governo.
O pesquisador mostra, por fim, que após refletir acerca das razões pelas quais Miquel
possuía uma pintura de papagaios, alguns assuntos passaram a chamar a sua atenção. O primeiro
é aquisição de obras por parte daqueles que não eram das elites, pois, para Amelang, há poucos
esforços no sentido de recuperar as imagens presentes nas moradias das pessoas anônimas da
Modernidade. O segundo é a retratação das coisas exóticas nesta temporalidade e a sua inserção
no dia a dia e na cultura popular. o terceiro é a variedade de elementos retratados, sendo o
papagaio, de acordo com James, uma das aves mais escolhidas no começo desta época, por
causa de suas cores e, também, por conta do que ele significava: uma cópia exitosa. A existência
de tal apreciação o motivaria a enxergar os pássaros de Parets desta maneira.
em “’Pequenas santas’ e suas vestimentas de comunhão: imagens guardadas em
arquivos pessoais femininos”, o segundo capítulo da coletânea, Maria Celi Chaves Vasconcelos
aborda o seu estudo sobre fotos de primeira comunhão de meninas, as quais foram conservadas
pelas fotografadas ao longo de suas vidas. A investigação almejou observar esses documentos,
o valor conferido a eles e, igualmente, pormenorizar detalhes, tais como os lugares, as roupas e
os acessórios típicos desta celebração.
A autora explica que se trata de um estudo qualitativo e histórico-documental, no qual
se analisou acervos de mulheres agregados em uma coleção. O caminho percorrido até a
descoberta dessa materialidade envolveu uma longa procura em locais onde recordações de
primeira comunhão de garotas pudessem estar à venda. Dados referentes ao assunto e aos
colecionadores em potencial foram colhidos, tendo sido encontrado, então, o arquivista detentor
dessa coleção de mais de duas mil fotos. Em seguida, as fotografias que poderiam servir para a
análise foram escolhidas, sendo os requisitos o registro dos nomes das fotografadas e o
reconhecimento dos espaços em que se deram. Na sequência, os materiais foram separados por
décadas: os mais antigos datam dos anos 1880 e os mais recentes são dos anos 1970.
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Ao explicitar estas datas, Vasconcelos defende que o início deste costume de solicitar
registros imagéticos do ritual em apreço e de preservá-los se entrelaça com o aparecimento,
com a propagação e com o barateamento da fotografia no país. Para a pesquisadora, este rito
foi um evento memorável na vida das mulheres dos anos 1900. O requinte foi se tornando mais
requisitado com o passar do tempo devido à relevância conferida a esse tipo de comemoração,
na qual a reunião dos fiéis e a sua afirmação enquanto tais eram viabilizadas. Além do mais,
atribuía-se um enorme valor afetivo às fotos dessa celebração porque a existência de conflitos
bélicos e a proliferação de infecções aterrorizavam os contemporâneos: essas recordações
asseguravam uma certa eternização da ocasião e, também, das crianças fotografadas, algo
bastante apreciado pelos pais, em especial.
Maria Celi discorre, então, a respeito do sucesso e da expansão da primeira comunhão
em um evento católico de enormes proporções. Ela cita Orlando (2003), para quem a renovação
do ensino religioso, realizada mediante o lançamento de edições mais atraentes, foi fundamental
à reconversão da população, a qual teria começado pelas meninas e pelos meninos. Através
desta forte presença do catolicismo nas escolas, o ritual pôde ser incorporado ao calendário
escolar, inclusive nos estabelecimentos laicos, onde um pároco seria encarregado de atuar junto
aos estudantes. O rito passou a ser entendido, assim, como mais uma das etapas que deveriam
ser percorridas pelos alunos;
No que tange aos detalhes observados nas fotografias, eles indicam, segundo a autora,
que houve alterações no cenário e nas vestimentas ao longo do tempo. No final do século
passado, por exemplo, as vestes eram mais parecidas com as que eram utilizadas no dia a dia.
As primeiras fotos, por outro lado, revelam a falta de um consenso em relação aos espaços
montados para o registro visual, muito divergentes entre si. Nas décadas de 1940 e 1950, a
sofisticação do vestuário atinge o seu auge, tendo sido inspirado no figurino das atrizes famosas
da época. Ademais, as fotos tiradas por pessoas próximas das retratadas começam a surgir e o
ambiente da celebração e da residência passam a figurar entre os lugares onde elas são
realizadas. Em contrapartida, nos anos 1960, as roupas e os acessórios se tornam mais sóbrios.
A pesquisadora conclui, por fim, que a primeira comunhão foi uma das recordações
mais importantes para várias gerações de mulheres. A comemoração, a qual envolvia bastante
organização por parte das garotas e de suas famílias, se disseminaria nos anos 1900 enquanto
um rito coletivo de expressão da fé católica voltado para escolares. O evento ganha força entre
as décadas de 1930 e 1950, quando o catolicismo estava fortemente presente nas escolas, mas
declina a partir dos anos 1960, momento em que princípios e certos dogmas da religião passam
a ser contestados por parte da população. A foto do ritual, no entanto, pode ser considerada uma
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das lembranças mais importantes contidas nos arquivos femininos constituídos dentro do
recorte temporal em questão.
O capítulo dez, “Arquivo pessoal nato-digital: o caso do acervo de Rodrigo de Souza
Leão na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ)”, por sua vez, é da autoria de Nádia Maria Weber
Santos. Esse conjunto de documentos se diferencia por ter sido construído e guardado de
maneira virtual. A autora coloca que a sua história tem a ver com os transtornos psicológicos
do seu titular: ele era esquizofrênico e teria se suicidado. Todavia, tal indivíduo realizou
diversas atividades artísticas e literárias ao longo de sua vida, tendo criado o acervo em apreço,
o qual se encontra atualmente na localidade explicitada no título.
A pesquisadora também expõe as suas áreas de atuação: história e psiquiatria. Em sua
jornada acadêmica, Santos teria analisado arquivos pessoais em busca da presença da identidade
desses sujeitos nesses materiais. Vários deles seriam selecionados justamente porque
pertenciam a indivíduos tidos como loucos ou a pacientes que nem Rodrigo. As ponderações
em relação à arquivologia presentes no capítulo foram embasadas nas considerações de Lira de
Abreu (2017, 2018), que possibilitou o seu acesso a esse acervo.
A autora afirma ter notado que os percursos de sujeitos com transtornos como o de
Rodrigo são bastante diferentes. Conforme Santos, eles criam vínculos com as suas condições
a partir de suas próprias visões, e quando descobrem atividades como as desenvolvidas por esse
artista e escritor, elas acabam se configurando enquanto elementos que auxiliam o tratamento
e que conferem significado às suas existências. Para a psiquiatra, ele mesmo foi ajudado pelas
suas produções.
Quanto ao âmbito da investigação, a autora relata aquilo que lhe chamou a atenção ao
observar esse arquivo pessoal. Segundo a historiadora, os nomes dados aos textos e às
composições se destacam, pois muitos deles remetem a termos psiquiátricos e psicológicos. De
acordo com a pesquisadora, entre fantasia e concretude, Rodrigo escreve acerca de um colapso
e de uma hospitalização de um personagem. No entanto, apesar do escrevente almejar que tais
passagens fossem encaradas como fictícias, algo que foi levantado por Lima de Abreu (2018),
Santos (2008) interpretou-as na qualidade de uma “escrita de si”.
Nádia deixa evidente, ainda, o seu reconhecimento em relação ao tamanho e ao valor
literário dessas obras. Rodrigo não registrou a data em todos os textos, mas, por se tratar de um
arquivo digital, foi possível localizar essa informação nas descrições dos documentos, o que a
historiadora entende como um dos benefícios desse tipo de acervo. Ela afirma que uma das
séries documentais contém 922 poemas. Neles, o escrevente teria exposto coisas como a sua
condição psíquica, os tratamentos, a hospitalização, os seus sentimentos e a sua sexualidade.
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De acordo com a autora, através da análise desse conjunto de produções, dos depoimentos do
titular e dos seus comentários em páginas da internet, fica evidente a importância da
constituição desse espaço virtual para ele, enquanto uma maneira de enviar e receber mensagens
e como um suporte que lhe ofereceria novos horizontes em termos de criação artística e poética.
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Recebido em: 27 de dezembro de 2024.
Aceito em: 30 de dezembro de 2024.